O público e o privado. Complementaridade dos serviços públicos de saúde.

Lenir Santos

A crise do Estado mais recente refere-se à diminuição de suas atividades em razão do traspasse de serviços públicos a entidades privadas mediante concessão e permissão, além da privatização de muitas delas. De acordo com Sabino Casesse, a crise do Estado atualmente “significa perda da unidade do maior poder público no contexto interno e perda da soberania em relação ao exterior”.

Sem dúvida, o alargamento das atividades do próprio Estado, em razão do aumento das atividades globais e da garantia de direitos, exigem novas formas de gestão. As que preponderaram mais nesses últimos 20 anos foram as da regulação pública das atividades públicas terceirizadas mediante concessão ou permissão.

O SUS não escapou dessa necessidade de participação do setor privado como complementar às atividades públicas da saúde.

A Constituição de 88 tratou desse tema ao permitir ao Poder Público recorrer aos serviços privados de saúde quando os próprios fossem insuficientes. E diante do baixo financiamento da saúde, impeditivo do aumento das atividades públicas, e principalmente, em razão das dificuldades da gestão pública, essa complementaridade se expandiu além daquilo que se previa inicialmente.

A complementaridade prevista na Constituição tinha o condão de não criar embaraços à Administração Pública que, na época, contava com 70% dos serviços privados complementando os serviços públicos. Impossível desconsiderar tal fato. Era o INAMPS quem mantinha esses contratos e convênios com o setor privado lucrativo e sem fins lucrativos. A intenção era que com a melhoria do financiamento da saúde, o Poder Público pudesse ir superando essa complementaridade e inverter esse percentual ao longo dos anos.

Contudo, de crise em crise – do financiamento às dificuldades da Administração Pública em gerir os serviços de saúde – novas formas de terceirização surgiram, como as organizações sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público e outras modalidades, como cooperativas de serviços, fundações de apoio, parcerias público-privada (PPPs) etc.

A realidade é que hoje seria impossível defender uma Administração Pública executora direta de serviços sem contar com a participação do setor privado. O problema é a complementaridade ser substitutiva dos serviços públicos. O risco é, invés de se complementar os serviços públicos, sob regras públicas e em quantidade que realmente possa ser denominada de complementar, a gestão pública minguar e os serviços privados crescerem além da justa medida e sem os necessários e devidos controles.

Não se pode deixar de considerar as entidades que realmente atuam em prol da sociedade, do interesse público, complementando serviços privados. Contudo, os riscos de perda do controle e da mescla de interesses privados verso interesse público não pode ser olvidado.

Os limites tem sido tênues. E na saúde há, muitas vezes, uma confusão entre esses interesses, principalmente quando entidades sem fins lucrativos como as santas casas são tomadas por entidades privadas lucrativas, terceirizadas pela santa casa. Não se perca de vista, ainda, a questão dos planos de saúde que vão adentrando serviços públicos, com criação de duas portas de entrada, além da intensa judicialização por detentores de planos de saúde em busca de serviços ‘complementares’ do Estado aos serviços de seus planos.

A inversão é perigosa. O SUS poderá, em muitos casos, ser complementar da atividade privada lucrativa, em nome de um direito à saúde que, no nosso entendimento não pode sustentar-se nesse tipo de reivindicação. Esse será um caminho invertido, um caminho que irá na contramão do direito à saúde e a favor do consumo de saúde.

Nesse ponto importa pensar que, se a atividade privada não perecerá e irá conviver com a pública no mesmo espaço social de garantias de direitos – a atividade privada terá, de fato, de ser complementar e não substitutiva do Estado. E essa complementaridade precisa ser consubstanciada em ajuste de colaboração e contratos de prestação de serviços que de fato sejam capazes de manter o controle do Poder Público sobre o setor privado complementar. É preciso encarar essa realidade e regulá-la em prol do interesse público.

O risco que se deve evitar é de não poder enquadrar os ordenamentos privados pelo público e que as suas atividades privadas gozem de uma autonomia incontrolável quando, na realidade, devem ser uma extensão do público no tocante ao interesse que perseguem. Deve-se evitar que os serviços privados complementares do setor público fujam ao domínio público, apartando-se das finalidades públicas.

Urge encarar essa realidade: o Poder Público não irá prescindir da sociedade. Em sendo assim, é necessário desenvolver mecanismos, não apenas de controle das atividades, mas que possam impor rumos, diretrizes, princípios públicos, controles que devem contar com a participação eficaz de uma sociedade consciente de seus direitos e com sentimento de pertencimento aos serviços de interesse público.

A cooperação deve ser o elo, o elemento principalmente nas relações público-privado; contratos, acordos devem apontar para a supremacia dos interesses sociais, públicos, coletivos.

As finalidades coletivas devem motivar os serviços privados que estejam a serviço do Estado, mediante contrato. Isso não significa negar que o setor privado deve gozar de suas autonomias, ter justo retorno do capital investido, sem, contudo descurar do seu fim: atendimento dos interesses sociais, coletivos, públicos.

Assim, não podemos mais ignorar as interdependência do público e do privado, fazendo de conta que o Estado irá de forma direta executar todas as atividades que lhe são próprias, sem contar com o setor privado, e que o setor privado pode atuar sem a participação do público.

Há que se ter a justa medida. E para que isso ocorra é necessário enfrentar a situação e não fazer de conta que ela não existe. Ela precisa ser demarcada, delimitada, controlada, fiscalizada e estar sob o comando público no tocante aos princípios, diretrizes e cumprimento das finalidades públicas.

E isso deve se dar fundamentalmente no plano político: cidadania,  democracia, transparência, qualidade de serviços, atendimento das necessidades públicas.

Não dá mais para continuar a pontuar que não se quer esse ou aquele modelo jurídico para a prestação de serviços; necessário que o Público se imponha sob qualquer modelo, dando as cartas, dizendo as regras, punindo, controlando, fiscalizando e, principalmente planejando as ações e os serviços públicos que precisam ser executados de maneira eficiente, eficaz e qualitativa.